5 de jan. de 2011

Crianças torturadas

Daniel Emídio de Souza

Uma mãe, preocupada com o filho de 2 anos, luta para a criança engolir uma medida de um medicamento de gosto desagradável, mas necessário para o tratamento proposto. Um adulto, parente da criança, a observar de perto a situação, resmunga: “Se fosse comigo, antes do terceiro pescoção, ele engolia o remédio bonitinho”. Outro homem, bem-vestido e educado, interrompe a minha fala em uma reunião de pais e professores em um colégio da cidade e oferece o seu parecer: “Agradeço a meu pai pelas surras que ele me deu. Hoje sou um homem de bem”. Um médico, atencioso e dedicado a seu trabalho e ao estudo da fisiologia, explicou-me, um dia: “Sei que é bobagem, mas não tomo banho depois do jantar; é morte certa. Aprendi com minha avó”.

Percebeu o leitor que três bobagens foram enumeradas. Poderiam ser centenas assinalando grosseiros enganos cultivados pelos adultos, em todas as direções, acerca de todos os assuntos, mas o que fazem com as crianças são artimanhas espantosas e “diabólicas”. Notícias revelam castigos, torturas e maus-tratos aplicados a uma criança. O episódio, chocante e terrível, contém uma clara demonstração da maldade própria do animal humano. Pessoas muito envolvidas com entendimentos religiosos tradicionais poderão encontrar explicações atenuadoras, atribuindo a forças não humanas o aspecto degradado e violento nos (e dos) adultos contra a criança. Na verdade, a covardia não é só contra a criança, mas contra os que são mais fracos por qualquer motivo e, portanto, indefesos, incluindo os animais e a natureza como um todo.

Ao adulto que prometia espancar a criança de 2 anos ou castigá-la fisicamente de outro modo ou deixá-la de castigo em um canto, é preciso esclarecer que nessa idade a criança não pode compreender essa atitude dos adultos ou, melhor, ela compreenderá de uma forma inesperada e com um repertório imaturo e em desenvolvimento nela. Nunca terá o entendimento que o adulto supõe. Muita gente grande pensa que criança é como um adulto pequeno. Não é! Os espancamentos, castigos físicos ou morais, os gritos, as ameaças, revelam não só ignorância grave sobre a mente infantil, como também são “sintomas” da falta de sabedoria, pouco desenvolvimento emocional, dificuldades para identificar seus sentimentos e saber que estão agindo em função do ódio.

Bater na criança, castigar, produzir sofrimentos, em nome do amor, é mentira. Sei que é uma mentira apreciada por muitos pais, até mesmo por aqueles dotados de esclarecimentos acadêmicos. Não são conhecedores do mundo emocional humano e muito menos da criança. As atitudes nascidas da impaciência e do ódio são, sim, eficazes, nunca duvidem disso. São eficazes para a criação de “núcleos” geradores de ansiedade, perturbadores da ordenação da vida mental e reorientadores do desenvolvimento psicológico. A sociedade como um todo começa, parece, a perceber a existência de um sentido para tanta violência, da mesma forma como os sintomas psicológicos têm um sentido.

Vi, com bom ânimo, que as autoridades que cuidam do presente caso são, sobretudo, mulheres e mães, fato importante para mudança das crenças ancestrais acerca da relação com os pequenos, uma relação que precisa excluir a mentira, a maldade e o autoritarismo. Para uma ampla compreensão do relacionamento entre pais e filhos, todo pai precisaria ser um pouco mãe, já que as mães, com muita freqüência, sabem ser um pouco pai.


Jornalistas sensíveis foram também à procura da história da agressora. Tais desastres não acontecem por acaso. Existe uma história a ser revelada, e quase sempre uma história de abandono, violência e prolongados sofrimentos. Prolongados sofrimentos têm repercussões sobre a vida psicológica e sobre o próprio desenvolvimento físico-neurológico. Têm razão os que foram procurar tais dados históricos. Com muita probabilidade encontrarão desastres na vida da mãe agressora e das outras pessoas que, de alguma maneira, foram coniventes. Da mesma forma, o adulto que sugeria o espancamento da criança de 2 anos que se recusava a ingerir um medicamento de gosto desagradável, deve trazer no íntimo uma história marcada pela violência, formas variadas de humilhações e agressões.

Esses padrões de violência física e moral são transmitidos de uma geração a outra e se perpetuam, assim como conhecimentos do âmbito da cultura popular, instalados na cabeça da criança e que perturba, por exemplo, o médico e seu conhecimento de fisiologia, como mencionado acima. Experiências vividas na infância, conhecimentos folclóricos – medicina popular, crenças, conceitos religiosos – e inúmeros outros aspectos da vida, permanecem enraizados com a aparência de verdades dogmáticas. Por esta razão, um homem, durante a conversa na escola, publicava a vantagem de ter sido “surrado” ou castigado pelo pai. Bater na criança, seja em nome do que for, é um exercício de crueldade e maldade, expressão de raiva, impaciência e falta de conhecimento, atitudes que precisam ser substituídas, se quisermos contribuir para o máximo possível de desenvolvimento da criança.


Daniel Emídio de Souza é psiquiatra.

Artigo Publicado no jornal "O Popular" em 31 de março de 2008

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